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Rascunhos da Vida: O SOLITÁRIO DO CORETO

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Do arquivo pessoal

Contos da rua Alagoas

Capítulo 3

O SOLITÁRIO DO CORETO

Herculano não parava de se culpar enquanto todas as manhãs aguçava seus ouvidos para tentar ouvir o som estridente das rodinhas do carrinho que passava atritando contra o passeio modelo Copacabana. Faltava o chiado, o barulho do freio, as faíscas em atrito com as pedrinhas salientes. Faltava o menino, que amava ajudar a quem ele amava.

Do arquivo pessoal

Um dia ao acordar mais cedo observou ao longe um vulto no coreto da pracinha. Era alguém esguio, com um chapéu de abas estilo Panamá, usava um paletó de aparência surrada, estava debruçado no parapeito do coreto. Olhava distante, esfregava as mãos lateralmente, vez por outra cruzava os dedos como se rezasse ou rogasse a Deus por alguém.

Após espiar a figura por cerca de um minuto, ignorou o magricelo e foi fazer o seu café observando o mesmo ritual de sempre. Sintonizou na Antena 1 e foi para a varanda observar a pracinha que agora enfumaçada pela neblina ocultava o coreto central.

Durante todo o dia o pracinha ficou ocupado com suas tarefas cotidianas. E com o alimentar dos cães, das galinhas, e dos diversos animais, que incluíam do cágado tupinambá que recebera o nome de Astoufo. Remetia-se a poda das árvores frutíferas, as quais ele fazia lentamente, metodicamente e sequencialmente. Parecia um check-list de tarefas diárias: Acordar, preparar o café, alimentar os animais, arrumar as coisas, observar a vizinhança, reclamar de tudo, cuidar das coisas menores.

A tarde foi a “Hora Pães” comprar pão sovado e pão de torresmo. Fazia vários dias que ele não ia até aquele local. Na verdade não ia desde o dia em que o menino magricelo deixou de incomodá-lo. Chegando ao local comprou o sovado e três pães de torresmo, dois para ele e um para dividir entre os dois cães que na verdade estavam sentindo falta dos pães do português.

A noite parecia que aqueles pães gordurosos não fizeram bem após dias de abstinência. Pois, naquela noite Herculano revirou na cama a noite inteira como se procurasse um alfinete que o espetava com frequência. Vez por outra levantava, ia para o banheiro e “trobetava” assentado ao vaso, ao ponto de atormentar Enoque e Enfoque, os cães de guarda. Após horas de tortura e de precisar limpar-se por apalpamento ao invés de esfregar o papel de forma costumeira, ele resolveu ir para a varanda observar o silêncio da praça.

Chegando lá, limpou os óculos de leitura, assentou-se na cadeira de balanço, pegou seu Kindle, começou a leitura até que percebeu um vulto percorrendo a praça. Dava voltas contínuas ao redor do coreto, uma, duas, três, incontáveis vezes, até que subindo as escadas estava lá, novamente o vulto esguio esfregando as mãos apoiado no parapeito do coreto.

Aparentemente ele olhava distante, pensativo, reflexivo. Nenhuma palavra, nenhum movimento brusco, apenas o levantar do chapéu, o limpar da testa suada, e o recolocar do chapéu novamente. A posição parecia desconfortável, pois ele era alto, e o beiral extremamente baixo para alguém com tamanha envergadura. De repente, ele refez sua postura, pós o chapéu no peito, esperou alguns segundos, fez um sinal com as mãos recolocando o penante na cabeça e saiu antes que o sol refletisse na relva que começava a evaporar formando uma névoa faceira junto às flores e arbustos da praça.

Herculano ficou inconformado com aquilo. Quem era aquela lombriga solitária, de onde ele viera, e o que planejava. Por que ele nunca tinha visto ele antes? Uma coisa ele tinha certeza, precisava investigar aquele caso, pois a cidade poderia estar em risco, ou pelo menos sua curiosidade estaria.

Após praticar o mesmo rito matutino, calçou sua bota comprada naquele senhor cuja loja vende apenas botinas e botas, e cuja filha ajudava o pai nas vendas cotidianas. Muniu-se de sua carteirinha de pracinha, seus documentos pessoais e dirigiu-se aos comércios ao redor da praça, a fim de descobrir se alguém já havia notado o vulto estranho.

Após muito andar, tomar quatro cafezinhos com seus amigos que a muito não via, encontrou-se na mercearia Lobato, que pertencia ao caçula do senhor Adilson Flores. E o caçula, já tinha quarenta anos, e cujo nome era Lindomar, um epíteto inusitado para alguém daquela idade.

Lindomar era o proprietário da mercearia, ele a comprara dos herdeiros de Udson Lobato após a sua morte, pois os filhos que eram médicos, dentista e advogados não pretendiam tocar o negócio patriarcal.

–    Lindomar, disse Herculano, você já viu uma pessoa estranha dando voltas no coreto em plena madrugada?

–    Já sim, ele faz isso a mais de um ano. Todas as manhãs por volta das quatro horas. Ele caminha ao redor do coreto, sobe suas escadas e fica olhando o horizonte por vários minutos, depois vai embora.

–    Quem é ele? Você nunca foi verificar?

–    Não sei quem é, e fico com preguiça só de pensar em descer minhas escadas para poder ir até a praça e ver quem ele é.

–    Mas se ele for um maluco? Um assassino, ou alguém tramando coisas estranhas ou perigosas.

–    Bem, com certeza estaríamos todos mortos, pois ele tem tempo suficiente para isso. Bem, na verdade apenas acho que é uma pessoa estranha e com hábitos mais estranhos ainda.

Após se despedirem, Herculano retornou a base da missão, frustrado por não saber quem era o “sombra” da pracinha. Mas, ao mesmo tempo alegre por ter uma direção pela qual trabalhar. Planejou uma intervenção e preparou-se para isso, mas antes recepcionou o entregador que apertava a campainha, o interfone e a campainha novamente.

Sem o dinheiro na mão e com o marmitex recebido, voltou confiante para a cozinha a fim de comer sua refeição e separar o necessário para o repasto noturno. Durante o decorrer do dia, fez o de costume. Foi à padaria, mas recusou-se a comprar o pão com torresmo, preferindo um foleado com recheio de ricota e tomate seco. Ele precisava estar bem para poder executar o seu projeto.

À noite o veterano deitou mais cedo, e o fez para conseguir executar seu intento com facilidade. Quando eram três horas da manhã, o seu despertador tocou. Então levantou-se calmamente, com a técnica que aprendera com o fisioterapeuta respiratório, a fim de não ter nenhum problema ao se assentar. Calçou suas meias que iam acima da panturrilha, vestiu um short de neoprene e sua calça por cima. Abotoou sua camisa colocando-a para dentro da calça, colocou um coldre axilar e dentro dele sua pistola que fora apelidada de Rebecona desde quando recebeu seu porte de armas. Não queria usá-las, mas mesmo assim estava preparado para fazê-lo. Colocou um paletó e foi para a varanda.

Lá com as luzes apagadas ficou aguardando a chegada do visitante. Quatro baladas soaram no sino da Matriz do Senhor Bom Jesus de Imperatriz dos Ases e o vulto esguio apareceu. A passos largos iniciou suas incontáveis voltas ao derredor do monumento central da praça. Após um longo período subiu as escadas, neste exato momento Herculano já estava a caminho do coreto.

Ao subir as escadas deparou-se com o ser esguio tentando descer as escadas. Ele o abordou e não o deixou prosseguir. O vulto que agora era visível estava agitado, subiu as escadas de costas como se temesse algo, tremulava e respirava ofegante.

–    Quem é você? Questionou Herculano.

Houve um silêncio, e um rapar de garganta rompeu a calada da noite. Então ele disse: José Ribamar de Los Pontes é o meu nome. O que você quer comigo? Não tenho dinheiro algum.

–    Não quero seu dinheiro, apenas quero saber o que você faz todos os dias neste lugar num horário tão diferente.

–    Venho a este local todos os dias, pois prometi a minha amada que faria de tudo para poder viver bem por longos dias. Promessa que tento cumprir desde o dia em que ela partiu.

–    O que aconteceu com ela?

–    Ela sempre se preocupou comigo, cuidando da minha saúde que há anos estava debilitada. Com isso descuidou-se da sua e quando percebemos já não havia cura para o mal que ela carregava. Só cabia a nós chorar, viver e aguardar a morte. Então Ermínia me fez prometer cuidar de minha saúde, mesmo que fosse necessário fazê-lo fora dos olhares curiosos.

     E assim tenho feito, durante estes últimos dezoito meses e quatorze dias. Todos os dias faço minha caminhada, mudei minha alimentação e hoje não dependo mais de remédios. Só não queria chamar a atenção de ninguém.

–    Então porque você estava indo embora?

–    Fiquei com medo do estranho que estava se aproximando do coreto e tentei fugir antes que fosse assaltado.

Herculano enrubesceu e exclamou: Não era minha intensão. Por favor, me perdoe. Mas porque você sobe sempre ao coreto?

–    Sempre o faço para recordar os momentos alegres que nós vivemos nesta praça, e tudo que permitimos sonhar durante quarenta anos de convivência. E é uma pena não termos tido filhos, pois eles comprovariam nosso amor.

–    Mais uma vez me perdoe, espero que cumpra sua promessa e se precisar de mim, estou logo ali na esquina da Rua Alagoas.

Herculano se despediu, e regressou para a sua casa. Deitou na rede da varanda dos fundos e começou a planejar como poderia ajudar José Ribamar a cumprir sua promessa. Então a noite deixou no coreto uma garrafa de água, um pacote de lenços e um bilhete dizendo: “A água é para repor as lágrimas misturadas com o suor. Os lenços para secar o rosto e permitir voltar amanhã”. E assim iniciou-se uma nova amizade, regada à água, suor e lágrimas.