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Rascunhos da Vida: O CARRINHO DE ROLIMÃS

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Do arquivo pessoal

Contos da rua Alagoas

Capítulo 2

O CARRINHO DE ROLIMÃS

Do arquivo pessoal

A rua Alagoas é uma via pública de pouco movimento, é possível ouvir os grilos e passarinhos da praça em frente, onde havia um coreto muito lindo mas pouco usado, e cujo passeio bem íngreme é pouco convidativo a pessoas idosas caminharem, mas é perfeito para algumas coisas.

Esta rua segue um longo caminho, são mais de vinte quarteirões até chegar à favela, de lá até na praça vemos a desigualdade social, ricos na praça, classe alta um pouco acima, classe média seguida dos pobres, miseráveis e desprezíveis no final da rua.

Papai sempre me disse não suba a rua até a favela, lá alguém pode lhe matar, eu sempre acreditei nisso, no máximo fui até o restaurante da Têté, um restaurante Colombiano que servia comida colombiana e mineira com um fundo musical de flauta peruana.

Na esquina da rua Alagoas morava um senhor, um expedicionário da segunda guerra mundial, um militar reformado, muito forte, e disciplinado, viúvo a uma década, que nunca havia tido filhos pois ele era estéril e a esposa o amava de verdade ao ponto de não exigir que adotasse uma criança para preencher o vazio. Seu nome Herculano, homem de pele morena, que já fora mais escura pelo calor do sol, mas agora estava mais clara, pois tinha pouco contato com a luz solar.

Herculano era metódico, tinha uma forma única de agir, sistemática, e definida. Acordava todas as manhãs às quatro e meia, sintonizava na CNN internacional, ouvia as primeiras notícias, passava o seu café de moagem arábica, que depois de coado era acondicionado numa garrafa de meio litro na cor verde. Tomava seu café com os biscoitos que comprava na padaria “Hora pães” de seu amigo Miguel, o português de Porto.

Enquanto isso lia o semanário local, e um jornal desses mais baratos, que contam mais notícias de assassinato do que qualquer outra coisa, e que tem fotos de mulheres lindas na capa para enganar os olhos desatentos às manchetes, mas firmes nas curvas das moças fotografadas.

Após o café, sintonizava na “Antena 1”, lavava a louça do café, estendia a roupa de cama, colocava os chinelos na janela para tomar a luz do sol. Então, dirigia-se para a varanda onde regava as plantas, algumas delas eram heranças da amada Maria Eleonora, como um pé de rosa do deserto, que floria por poucos dias e cujas flores eram lindas, verdadeiramente maravilhosas.

Enquanto enxia o regador, ouviu um guinchar bem agudo, penetrante até o profundo da alma. Doíam todos os pequenos componentes do seu delicado ouvido. Aquele barulho chamou sua atenção para a praça. Ao olhar viu um menino magrinho, com pouco cabelo na cabeça, uma bermuda bem floral, uma camisa listrada e um chinelo estilo Havaianas. Pelo estereótipo, ele vinha da favela, montado em seu carinho de rolimãs. Carregava uma sacola de supermercado daquelas retornáveis com uma foto de uma família feliz carregando um pacote de pães.

O barulho infernal era do carrinho de guia. Que zumbia ao atritar as rodas sobre o passeio Copacabana da pracinha central da cidade. O passeio tinha um caminho de mais de cem metros de distância até a rua que faceava a praça. Essa rua por sua vez era muito movimentada, tinha um canteiro central, um semáforo na esquina da praça tanto de um lado quanto do outro, a rua levava o nome de um dos pracinhas que morreram na guerra e fora contemporâneo de Herculano. Era a avenida Expedicionário Joaquim Vieira, a principal avenida da cidade, que cruza a cidade de sudoeste a noroeste, no sentido do sul de minas.

Chegando à esquina, o menino parava, descia do carrinho colocava debaixo do braço e cruzava o semáforo. Do outro lado entrava na Hora Pães, em pouco tempo saia de lá, carregando quatro pães de sal e um saquinho de leite pasteurizado integral. Colocou o carrinho nas costas amarrado por um cinto em forma de xis, os pães e o leite na sacola de retornável e subiu novamente a rua.

Herculano pensou ainda bem que passou. E já fora embora aquele que tirará sua paz e sua concentração. Voltou a regar as plantas, dirigindo-se para o quintal a tratar dos animais que ali estavam. Galinhas, patos, gansos, dois cães um boxer e um sem raça definida. No meio do galinheiro havia um pequeno lago com alevinos, e várias tilápias bem grandes e um cágado que também fora herança de sua amada, comprado de um índio tupinambá numa das suas viagens de férias.

Quando ele aceitou a compra pensava que não iria sobreviver, e já haviam passados mais de trinta anos até agora e o cágado permanecia firme e forte, comendo bem durante a primavera, verão e outono, e quase não se alimentando no inverno.

Aproveitando a ida ao quintal soltou os cachorros e regou a horta que produzia alimento em abundância para doar duas vezes por semanas para o asilo São Quirino. Couve-manteiga, quiabo, chuchu, jiló, cebolinha, salsinha, rúcula e coentro eram o que mais produzia. Era um costume de Eleonora e que ele preservava.

Após o ritual da manhã, deitava-se no sofá e ficava assistindo aos programas de bem-estar produzidos diariamente, enquanto esperava chegar o “marmitex” com salada separada do restaurante da Têté. O entregador já sabia até como chamar o senhor Herculano, era preciso tocar a campainha, o interfone e a campainha novamente para que o cliente de um salto saísse de frente da TV e fosse buscar o pedido com o dinheiro em mãos, inclusive uma pequena gorjeta.

Aquele marmitex era o suficiente para duas refeições, uma parte no almoço e o restante no jantar. Não que Herculano fosse miserável, mas era muita comida para alguém que mantinha a forma. O ritual era o mesmo, separava a comida no prato, acondicionava o restante na geladeira, lavava a louça, comia uma colher de doce de “pau de mamão”, assentava diante da TV e assistia o jornal.

Após os jornais ia para a varanda onde se assentava para ler seu Kindle (com o qual se familiarizara muito bem) e ficar observando o movimento da rua. Estava lendo neste momento um livro de biografia de um menino de Pedra do Indaiá. Curtia cada aventura e pensava, eu fiz coisas parecidas.

Dê repente, ouviu novamente o guinchar das rodinhas do carrinho de rolimãs, era novamente o menino magrelo e de corte de cabelo duvidoso. Que tirou sua paz novamente. E isso aconteceu por longos dias, todas as manhãs por volta das seis horas e a tarde por volta das duas horas. Herculano já estava acostumando, apesar de estar chateado com isso, como pode um menino tão pobre caminhar tanto para poder comprar pães, pensava ele.

Numa destas descidas do “menino da favela”, ele ouviu um buzinar muito alto, quando se levantou para olhar não viu mais o menino, mas havia um tumulto no semáforo e um barulho de sirene bem ao longe e que foi se aproximando lentamente. A rua silenciou novamente e voltou à normalidade. Às duas horas não ouviu o guinchar das rodinhas, sentiu falta.

No outro dia pela manhã aguçou os ouvidos e não ouviu novamente. Às duas horas nada do menininho cruzar a praça com seu carrinho irritante. Ficou curioso e resolveu subir a Rua Alagoas para descobrir porque o menino não descia mais a rua. No meio do caminho encontrou algumas crianças e pediu informação. Perguntou se sabiam onde morava o menino do carrinho de guia, e todos disseram na casa do fim da rua.

Apressadamente Herculano acelerou seu carro, não queria ficar muito tempo dentro da favela. No final da rua ficou assustado. Havia um portão fechando toda a rua, como nunca havia percebido sua existência?

Na verdade ele nunca tinha ido ao final da Rua Alagoas, pois tinha que cruzar a favela. Era o portão de uma mansão. Ele chegou à portaria e conversou com o porteiro, disse que sentiu a falta do menino que descia a rua num carrinho de rolimãs.

O porteiro com lágrimas nos olhos disse, o menino morreu à quase dois dias. Ele estava lutando contra o câncer, e disse para o pai durante as férias que gostaria de ser útil para sua família. Então perguntou se poderia ir buscar os pães todos os dias. O pai muito contrariado aceitou a sua proposta, mas o motorista deveria segui-lo para caso ele passasse mal.

Na última segunda-feira ele cruzou o semáforo e caiu dentro da padaria, o motorista o amparou, guardou o carrinho de guia e o levou para o hospital. Ele chegou já quase sem vida, mas antes de entrar na sala de cirurgia disse com um sorriso no rosto ao seu pai: “consegui levar os pães todos os dias”. Depois disso nunca mais vimos seu sorriso no rosto e a casa se escureceu.

Herculano se despediu, e desceu a Rua Alagoas muito chateado. Havia julgado o menino como favelado, mas era apenas uma criança que desejava ser útil durante sua vida. Ao voltar para casa Herculano desejava ver o menino, descendo a rua, tirando a paz dos ouvintes, mas alegre por ser útil a quem amava.