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Rascunhos da Vida: A Gameleira

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Do arquivo pessoal

Contos da rua Alagoas

Capítulo 4

A GAMELEIRA

Do arquivo pessoal

José Ribamar passou o dia pensativo. Sua casa parecia minúscula apesar dos cento e vinte e dois metros de área construída, e do lote de seiscentos metros quadrados. Já havia dado mais de dez voltas ao redor da casa, e entrado em cada cômodo pelo menos cinco vezes. A agitação da madrugada estava tirando sua paz. Será que ele voltaria ao coreto? E a memória de Ermínia naquele local tão especial, como ficaria sem ver o sol nascer por detrás dos montes e sobre a bênção do Senhor Bom Jesus de Imperatriz dos Ases.

Passou pelo atelier de Ermínia pela sexta vez e parou defronte ao quadro inacabado. Nele uma árvore frondosa, um cocar aos pés da mesma. A árvore faltava folhas, faltava sombra, não tinha cores. O cocar estava completo, exceto por uma pena que faltava. Dava vontade de completar o quadro, expressar as cores de um coração partido, colocar a pena do pajé fugitivo ou enterrado. Enquanto observava os detalhes uma lágrima rolava em seu rosto, descrevendo um caminho próximo ao desenho do nariz, escorrendo pela maçã do rosto, descendo sobre a barba por fazer.

Recompôs-se de uma vez, aquela não era a postura de um descendente da corte espanhola. Ergueu o rosto, enxugou as lágrimas com o lenço do paletó, e voltou a caminhar com os pensamentos ainda focados no susto pregado por Herculano. Seu coração quase saiu pela garganta quando aquele homem subiu as escadas do coreto. E se ele tivesse atirado como se defenderia? Se houvesse intenção de agredi-lo, e se desejasse roubá-lo, e se, e se.

Já era quase quinze horas e não havia almoçado ainda. Era só pegar a refeição marcada como quarta-feira que estava na geladeira, colocar no micro-ondas ou levar ao forno, separar a salada e distribuí-la no prato. Isso tudo era invenção de Carmem, Carmélia e Caetano que usaram seus talentos para tornar a vida do papai menos enfadonha e mais prazerosa.

Acharam que se fizessem as refeições para a semana toda, guardassem em potes as saladas, o arroz e demais carboidratos, bem como as carnes em recipientes que pudessem ser levados ao micro-ondas ou ao forno tradicional facilitariam a vida do papai que não era um bom cozinheiro. No máximo sabia fritar um ovo, e fazia uma pipoca como ninguém sabia fazer. Fora isso era um desastre na cozinha.

Então a casa mantinha uma rotina, três domingos por mês os filhos iam isolados, dependendo da escala de Carmém, e ao quarto domingo, sempre que possível todos se reuniam. O que só não acontecia quando Caetano estava em viagem dando palestras pelo mundo a fora ou Carmélia estava viajando para conseguir novos investimentos para o mundo financeiro.

Apesar de atrativa a refeição da quarta-feira, composta por uma salada de alface, tomate cereja, broto de bambu, da língua de boi ao molho madeira, o arroz a grega e o feijão roxo chamarem a atenção de qualquer um, Ribamar não queria comer. Pensava o tempo todo, como poderia se proteger se alguém o encontrasse novamente no coreto.

Com a mente extremamente cansada observou ao longe as varas de pesca empoeiradas junto ao barco que empoeirava igualmente junto. Tomou uma decisão, iria pescar, pois assim não ficaria pensando no coreto, no susto, e em Ermínia. Pegou o embornal, as varas e apetrechos, fez um lanche reforçado composto de pão com mortadela ouro de uma marca bem conhecida, uma maçã e duas tâmaras, uma de suas frutas prediletas.

Revisou os acessórios, verificou o estado das varas, pegou tudo colou no bagageiro e entrou no seu carro de trilhas, um Jeep Willys 1948 quase todo original, com exceção daqueles assentos que foram reformados e que Ermínia insistiu em bordar uma borboleta no do passageiro e uma lagarta do lado do motorista e no banco traseiro uma galha de árvore com a metamorfose da lagarta. Era uma relíquia comprada do filho de um colecionador que não dava apresso à memória de seu pai.

Já havia decidido iria a Lagoa do Céu Aberto, um lago lindo cheio de traíras, tilápias e outros peixes saborosos. O local tinha esse nome, pois na sua margem não crescia uma única árvore ou arbusto por uma faixa de cinco metros ao seu redor, com exceto na entrada da água e na sua saída um pouco abaixo. Ao seu redor só uma grama rala e bem verdinha, um tapete de cinco metros de largura por toda a extensão do lago. Rege a lenda que a noite um anão corta todos os brotos de árvores e arbustos e dá para um deus comedor de brotos, a fim de amenizar sua fúria. Na verdade a borda da lagoa é arenosa demais, e isso impede que árvores brotem, permitindo apenas uma fina camada de gramíneas.

Pescou a tarde toda, devorando o lanche e conseguindo duas boas traíras, uma tilápia apetitosa, dois bagres escorregadios e que dariam um bom guisado, e várias picadas de muriçoca. Já estava entardecendo, recolheu todas as coisas, bebeu o último gole de água, ligou o veículo da lagarta e sua borboleta e voltou para casa.

Próximo ao antigo Pau-de-Óleo o jeep parou do nada, já era meio dia, meio noite, um entardecer rubro e tenebroso. Ao olhar no carro e não ver nada errado deu partida novamente e nem sinal de centelha. Olhou ao longe e viu um vulto que vinha em sua direção, era uma pessoa esguia, cabelo ralo, nariz comprido, boca de lábios estreitos e bem largos, daqueles lábios que quase emendam com as orelhas. Tinha na cabeça uma boina de pele, parecia de esquilos, olhou para Ribamar, deu um “tapinha” no Jeep e disse pode ir que já é hora.

Ribamar sentiu um calafrio, olhou para o chão após a passagem do homem e havia uma pena entre seu pé e o pneu do veículo, ela não estava lá antes. Agachou pegou a pena, olhou para trás para perguntar ao senhor se ele havia deixado cair e não o viu mais. Entrou no remanescente da segunda mundial, acionou a chave na ignição e o carro ligou como se fosse novo, até o chiado do motor que tanto o incomodava não estava mais parecendo.

Apressadamente foi para casa, de longe abriu o portão eletrônico, entrou sem nem ao menos acenar para os vizinhos que estavam nas varandas escapando do calor das casas. Entrou em casa com os peixes, e a pena na mão, deixando para trás o embornal, e as varas. Não sei por que foi para o quarto de Ermínia. Lá chegando percebeu a pena em sua mão aproximou-a do quadro, era a pena que faltava.

Derramou tinta verde, lilás, vermelha, amarela e branca no prato de pinturas, misturou em gestos diagonais as cores sem que perdessem suas características. Mergulhou delicadamente a pena sobre a tinta, pois já havia visto Ermínia assim fazer numa fantasia de carnaval dos meninos. Pegou a pena e a encostou no quadro, tocando no cocar sem pena, as cores da tinta transferiram para o tecido. O quadro estava pronto, só faltava à assinatura de sua amada.

Deixou a pena sobre um papel, foi para o quarto, pegou seu chapéu e foi para o coreto da cidade. Chegando lá subiu a escada encontrando uma garrafa de água, uma caixa de lenços e um bilhete dizendo “A água é para repor as lágrimas misturadas com o suor. Os lenços para secar o rosto e permitir voltar amanhã”. Bebeu a água de um só gole, olhou o horizonte, respirou forte, retornou a sua casa na intenção de voltar novamente nas madrugadas.