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Rascunhos da Vida: Amigos são inseparáveis…

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Retirado do site: https://www.pexels.com/pt-br/foto/foto-de-pessoa-segurando-um-cachorro-preto-e-branco-1452717/

Contos da rua Alagoas

Capítulo 5

AMIGOS SÃO INSEPARÁVEIS

Retirado do site: https://www.pexels.com/pt-br/foto/foto-de-pessoa-segurando-um-cachorro-preto-e-branco-1452717/

Lá vinha ele descendo a rua novamente, cabelos ruivos e encaracolados, pele sardenta, olhos bem clarinhos, bermuda surrada, uma camisa listrada e um tênis com dois números a mais do seu. Guilherme, ou Guigui da grota, acordava cedinho e vinha ganhar um café bem quentinho na Hora Pães, pois conquistara o coração de Miguel que imaginava Guigui morando na casa de dona Dôra, uma simpática velhinha, proprietária da casa 15 na Rua da Grota.
Sim, para Miguel, Guigui morava num dos barracões de D. Dôra. Mal sabia ele que Guigui passava todos os dias na casa de Dorotéia para recolher o lixo dos barracões, varrer o pátio e limpar a capelinha. Por causa disso ele era recompensado com um bom almoço, e uns trocados todos os dias. Nada de grande valor, mas pelo menos uns cinco a oito reais, e que para ele era melhor que nada.

Quando Miguel via Guilherme já preparava um lugar especial para ele, fazia um pingado, colocava um pão na chapa, ou uma fatia generosa do bolo do dia. Guigui parava na praça, lavava as mãos na torneira da mangueira, as secava num paninho vermelho que sempre trazia no bolso. No paninho havia seu nome bordado “Guilherme Alcântara Lisboa”, única lembrança do carinho da mamãe que se fora extraditada por ser uma criminosa em seu país natal, fato que Guigui desconhecia. E isso aconteceu dois anos atrás, quando ele tinha apenas nove aninhos, e de lá pra cá a rotina é quase sempre a mesma.

Todos os dias ele fazia a mesma coisa, do lanche preparado ele separava um terço para levar embrulhado num guardanapo. Parece até um ritual, ele corta o lanche em três pedaços, coloca um no guardanapo e depois no bolso. Esse um terço era para Rômulo, o cãozinho da casa abandonada onde ele morava. Desde quando Guigui chegou a Rua da Grota ele encontrou Rômulo, um canídeo que tinha apenas três pernas por ser vítima de um atropelamento ainda bem pequeno. A partir desse encontro ficaram amigos e usavam seus corpos para esquentar um ao outro.
Parece muito estranho como um menininho pode viver sozinho? Mas, Guigui aprendeu como evitar o entra e sai para a adoção. Aprendeu que bastava dizer às pessoas que vivia na casa de Dôra, que confirmava que ele estava lá todos os dias. Pois, desde o último processo de adoção descobriu a duras penas que nem todos tem bom coração. Sofreu nas mãos dos familiares de uma família que o amava de todo coração, mas que todos os dias ele ouvia frases que não deveriam ser direcionadas nem a um cão.

A casa abandonada era bem antiga, não tinha energia nem água, mas possuía paredes bem sólidas, com arquitetura do barroco mineiro, o ouro dos entalhes já tinha sido tirado a tempo ficando apenas as portas e janelas de madeira de lei. O assoalho de madeira que rangia ao pisar nas tábuas, e a cozinha, contava com uma dispensa tampada por um grande armário que tinha um fundo falso onde Guigui e Rômulo moravam.
Naquela dispensa sem janelas, cuja claridade entrava pelos orifícios da carreira de cobogós, havia nela várias prateleiras todas construídas em alvenaria, nas laterais havia de ambos os lados cinco prateleiras de um metro e vinte por quarenta de profundidade e no seu comprimento três prateleiras de um metro e noventa por setenta de profundidade. Nestas maiores Guigui colocou um colchão que havia encontrado na esquina da casa de Herculano. Pelo que parece, haviam sido trocados os móveis e jogaram fora dois colchões e um saco de dormir.

Aquele colchão foi sua primeira grande vitória, pois até aquele dia ele dormia junto com Rômulo num enorme papelão que ainda estava no assoalho da dispensa. Ele demorou cinco horas para trazer aquele colchão da porta de Herculano até o velho casarão. Dentro do saco de dormir cabiam tranquilamente Guigui e Rômulo que agora não sentiam tanto frio.
Do lado de seu colchão havia uma pequena pilha de cobertores, um travesseiro de pena de ganso, achado no bota fora de dona Marieta, e dois “cofrinhos” um bem grande onde depositava moedas de um real e outro uma latinha onde guardava o dinheiro para comprar itens de grande necessidade.

Ainda naquele ambiente havia nas prateleiras uma escova de dente, um creme dental, um pente sem dentes, algumas roupas bem dobradinhas que eram usadas enquanto possível e depois descartadas por não terem condições de uso. Uma garrafa PET de 3 litros, que usava para escovar os dentes, molhar os cabelos e vez por outra penteá-los. Tinha uma cadeira escolar que arrastara para aquele lugar, algumas revistas em quadrinhos, alguns livros de histórias que eram escorados por uma estátua de um cavaleiro medieval sem um dos braços.
Empilhados estava ali alguns cadernos cujas folhas haviam sido arrancadas ficando apenas as que eram limpas. Uma lata de leite ninho cheia de lápis de todos os tamanhos, marcas, cores e formatos, uma régua, um esquadro, um transferidor e várias borrachas.
Noutra prateleira um isqueiro, uma lamparina, um metro de pavio, e embaixo no chão um recipiente com querosene que era comprado com suas economias. Tinha uma lata de tinta pequena onde ele colocava uma sacola plástica para os dias em que algo desse errado ele pudesse usar como pinico, e um rolo de papel higiênico. Pois, aproveitava que a capelinha de Dona Dôra tinha um banheiro para fazer suas necessidades.

Guigui evitava acender a lamparina, pois temia ser descoberto e que pudesse acontecer algum acidente caso dormisse de cansado. Só o fazia quando começava uma leitura e a luz do sol se punha então ele acendia a mesma terminava a leitura, apagava a mesma e deitava-se no seu leito.
Havia uma caixa grande de madeira onde colocava algumas bolachas e guloseimas que ganhava das bondosas pessoas das ruas onde passava. Até mesmo Herculano, com seu costumeiro mau humor, costumava fazer alguns agrados para ele, como no dia que lhe deu um ovo de páscoa que pesava quase meio quilo.

Quando Guilherme pisava no assoalho Rômulo já sabia que era ele, então vinha correndo com suas três patinhas a fim de comer sua saborosa refeição. Assim os dias passavam com grande satisfação. E a cada dia aquela amizade crescia fazendo com que eles compartilhassem bons e maus momentos.
O brincar nas pracinhas era uma rotina, Rômulo adorava buscar a bolinha de meias que Guigui fizera para ele. Gostava também de perseguir os pombos que insistiam em comer as sementes de girassóis da praça da velha matriz. Ao lado do cruzeiro tentava pegar o lagarto que ali habitava e que já lhe dera uma rabada no seu curioso nariz.

Vez por outra iam para a cachoeira onde Guilherme sorrateiramente jogava Rômulo na água a fim de limpar o cheirinho desagradável do amiguinho peludo, que tinha grande prazer em revirar o lixo do restaurante da Tetê a procura das iguarias da culinária mineira preparadas pela mão da colombiana.

Antes de a noite chegar Guigui se dirigia ao “sopão voluntário” que era organizado pelos “Amigos do Coração” da paróquia do Padre Vivi. Lá tomava a sopa do dia, se bem que gostava mais da canjiquinha da turma de quarta-feira, e guardava o pão para o amigo de três patas e um pouco do prato do dia num copo que carregava no bolso.
Antes do sol se por era hora de entrar em casa. A rotina era sempre a mesma, colocava o copo na varanda do casarão, pulava o muro de Zé Caetano, empurrava a porta de madeira deixava Rômulo entrar. Verificava da varanda se ninguém o observava, pegava o copo e caminhava sobre as tábuas rangentes a fim de chegar à dispensa.

Chegando lá entrava em seu portal de “Nárnia”, empurrando o fundo do armário que abria com facilidade, e após a entrada de ambos depositava os trocados do dia, uma parte no cofre dos sonhos e a outra no cofre do dia. Pegava aquele prato esmaltado que vivia no chão, derramava o prato do dia para seu amigo cão. Lavava o copinho com água e depois colocava para Rômulo. Partia o pedaço de pão que comiam numa só bocada, contava para seu grande amigo uma história em voz sussurrante, vestia um moletom surrado, e ajoelhado no papelão com seu amigo do lado rogava ao Bom Jesus que mantivesse o seu cuidado. Abria o saco de dormir, posicionava o travesseiro, entrava com Rômulo “o amigo” e ajeitava o travesseiro, repousava assim a dupla inseparável esperando o mesmo roteiro.