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Rascunhos da Vida: O primeiro encontro…

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Retirado do site: https://www.pexels.com/pt-br/foto/flores-rosa-e-roxas-no-carrinho-preto-94832/

Contos da rua Alagoas

Capítulo 5

O PRIMEIRO ENCONTRO

Retirado do site: https://www.pexels.com/pt-br/foto/flores-rosa-e-roxas-no-carrinho-preto-94832/

Era janeiro de 1946, dia de Santo Antão, um santo cristão natural do Egito, um líder destacado dos Padres do Deserto, um santo segundo a tradição foi tentado pelo próprio diabo, mas esta história não vem ao caso. Todos os jovens de Imperatriz dos Ases estavam na praça do coreto, em frente à Matriz de Senhor Bom Jesus de Imperatriz dos Ases.

Todo domingo era assim, por volta das cinco e meia começavam a amontoar aqueles jovens com suas galochas, ou sapatos devidamente lustrados, calça social, suspensório e gravatinha borboleta, as gravatas longas eram de uso estrito dos casados, e as gravatas de ponta reta para os viúvos e solteirões. Todos se assentavam nos bancos da praça, que distanciavam uns dos outros apenas um metro, ao todo a praça tinha noventa e seis bancos de dois metros cada.

Em cada banco cabiam espremidos cinco ou seis jovens candidatos aos corações das senhoritas que chegavam de carruagens, carroças e diligências. Jovens cujo esporte preferido era ver as canelas das moçoilas ao subir e descer de suas conduções, quando levantavam as saias e vestidos até quase a altura do joelho. Chegavam antes de todos e saiam antes do amém do Vigário a fim de assentar novamente nos melhores bancos da praça e se deleitar vislumbrando aquelas pernas que nunca viam sol, e que muitas vezes tinham mais pelo que a deles próprios.

Como não havia “playboy” o jeitinho era fantasiar a partir das canelas o corpo sedutor daquelas meninas-moças. Herculano e outros ex-pracinhas eram privilegiados, tinham dois bancos reservados, que ficavam defronte a escadaria da Matriz, o que proporcionava ver as canelas expostas por mais tempo, pois as mocinhas precisavam levantar suas vestes para não tropeçar na decida dos degraus.

Tinham retornado da guerra a aproximadamente dois anos, e de lá pra cá cada um seguia sua carreira, só Herculano continuou militar. Com os olhos fitos na escadaria ele reparou uma jovem, quer dizer uma canela, a pele morena tinha na panturrilha uma pinta em formato de feijão, não era pequenina, pois ele conseguiu ver com clareza o formato mesmo estando ao menos a doze metros de distância do coche que carregava aquela canela sinuosa.

 À noite Herculano sonhou com aquelas canelas subindo e descendo escadas, entrando e saindo dos coches de mais variadas alturas. Acordou todo suado e com a roupa de baixo encharcada pela polução noturna. Precisou tomar um banho e lavar sua ceroula, para que mamãe não percebesse o acontecido e lhe chamasse a atenção dizendo que já era hora de ele se casar.

Como não havia percebido tão deleitosa panturrilha alinhada a uma canela tão lisinha e brilhante. Não tirava da cabeça o movimento do pezinho e enrijecer da musculatura visível ao esticar-se para alcançar o estribo da carruagem.

A canela de Ana Maura tinha uma cicatriz de arame farpado. A de Maria das Dores tinha três pintinhas próximas ao suvaquinho do joelho. A das gêmeas, Maria de Fátima e Maria da Luz tinha a mesma falha na parte da frente da canela. A canela de Luiza Guimarães era esplendorosa, com sua pele negra, brilhante e sedosa, era inconfundível e alvo de cobiça de metade daqueles garanhões. A quem gostasse da perna branquela de Maria das Dores, a filha do italiano Giocondo, que de tão branca poderia ficar ao sol dias e dias que mal teria uma cor de chinês preso há anos na solitária.

Mas aquele feijãozinho atormentava sua mente, não conseguia ver mais nada, e quando estava limpando os fuzis da infantaria via aquela imagem enquanto lustrava delicadamente o cano, carenagem e a coronha da arma de fogo. Fez um serviço tão bem feito que realmente mereceu destaque aos ouvidos do novo Tenente do batalhão.

Passado alguns dias, descobriu de quem era a canela, quando assentado no banco da praça, avistou um coturno de alta patente ao lado do coche a fim de dar a mão àquela moça a quem pertencia o grão de feijão. Era o coturno de Geraldo Aguilhera, o novo Tenente do batalhão, e a portadora do feijãozinho sua filha caçula, o xodó da casa. Uma menina linda de nome era Eleonora.

Pronto, acabaram-se as possibilidades de seu encontro com a dona do feijão, deveria focar na do arrame farpado, ou na das três pintinhas, pois a pele negra de Maria das Dores já era muito concorrida. Ao vê-lo de longe, o Tenente Aguilhera acenou com um sorriso para Herculano, pois ficara sabendo que este serviu na grande guerra e que voltara como herói tendo salvo pelo menos dois amigos em combate. O sorriso também era um brinde ao excelente trabalho na limpeza e conservação dos armamentos da infantaria.

Após a missa, todos os garanhões correram para a praça, cada qual se limitando ao local que escolhera anteriormente. Aguilhera novamente viu a Lisboa, sobrenome de Herculano, só que desta vez fez um gesto lhe chamando. Quando chegou perto da carruagem, este olhou para Eleonora, e seu coração quase não se conteve no peito, subindo e descendo por sua garganta num ímpeto quase torturante.

–    Lisboa, quero que se apresente no meu gabinete amanhã antes da formação do pelotão.

–    Sim, senhor. Estarei lá pontualmente.

Neste momento o coração de Maldronado Lisboa voltou para o lugar, mas sua mente deslocou-se para as masmorras do pelotão. O Tenente viu sua intensão, e com certeza iria lhe enviar para a solitária. Bem pelo menos não morreria por isso. Mas, confesso que a noite foi longa para tanta imaginação e sofrimento.

Pela manhã, Herculano levantou de um pulo, antes mesmo do galo cantar. Buscou a salva de banho feita de bronze fundido, despejou nela água e lavou-se brevemente. Vestiu a farda, lustrou o coturno, empunhou seu coldre, seu quepe e foi para o quartel. Lá chegando foi ao gabinete do Tenente, tendo que passar por pelo menos três subalternos que autorizaram sua passagem. Apresentou-se de forma característica com saudação militar.

–    Descansar soldado. Você viu minha filha ontem? Perguntou Aguilhera fitando-o nos olhos.

–    S…sim. Disse sufocadamente Herculano, imaginando as consequências de sua resposta.

–    Pois bem, ela é recém-formada em magistério, e foi designada para uma escolinha no interior de Imperatriz dos Ases. Você será o encarregado de leva-la todos os dias ao seu local de trabalho, e a trará de volta arriscando sua vida para deixa-la muito bem guardada. Posso contar com você?

–    Claro que sim, Senhor. Sinta a tarefa cumprida em todos os sentidos.

–    Então retirar-se soldado. Amanhã no mesmo horário quero você na porta da minha casa para levar Eleonora ao estabelecimento de ensino.

Após a despedida formal de um militar, Herculano pode então respirar aliviado, nunca imaginara tal proposta. Teria a oportunidade de acompanhar todos os dias a dona do feijãozinho. Todos os dias passou a apresentar-se antes do cantar do galo na residência dos Aguilhera, e de lá conduzia no coche a Dama da mais bela panturrilha do universo.

Com o passar dos meses eles acabaram se apaixonando e o jovem Herculano, agora Cabo, caindo na graça de seu superior. Chegou o dia em que tiveram de revelar a paixão, que foi imediatamente intimada à seleção de uma data para o casamento. A qual foi sugestionada dia 17 de janeiro de 1948, o mesmo dia do patrono de todos os monges, a qual foi acatada como muito boa pelo pai da linda dama professora. Dia de São Antão do Deserto, alguém que permitiu o vislumbre de uma canela salpicada com feijão.

A história ficou guardada no coração de Herculano até o dia do casamento, na noite de núpcias eles não se preocuparam com o ato sexual, mas se importaram em revelar as marcas escondidas no corpo de um e do outro, ao ponto de não haver segredos, e muito menos feijõezinhos que não pudessem ser bem explorados e identificados.

Foi preciso o mostrar de uma canela para despertar o desejo de uma lagarta frente sua eterna borboleta. Talvez do feijãozinho brotasse a haste da metamorfose da lagarta que poderia ser tornar bela borboleta. Quem um dia pensou que uma perna bem coberta pudesse atormentar o pensamento e a alma de alguém que vivenciou os horrores de um mundo macabro, onde amigos perderam a vida, e cujo ombro ficou marcado com o sangue dos mártires brasileiros sem nome relatado na história.