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A Evolução da Violência

A EVOLUÇÃO DA VIOLÊNCIA

Por João Cenzi

Até 1905 os cientistas ainda buscavam entender o Éter, uma imaterial e fantasmagórica substância que, acreditavam, preenchia todo o vácuo do universo. A publicação de Einstein de sua Teoria da Relatividade Restrita nesse ano deu início à derrocada dessa ideia, mesmo que relutantemente.

Assim caminha a Ciência. Pode partir de ideias malucas, mas o acúmulo de conhecimento sempre abre novos horizontes e descortina novas verdades.
Ainda até quase meados do século passado pensava-se que a vida estivesse qualitativamente fora da alçada da física e da química, que talvez fosse uma espécie de “protoplasma” etéreo. Hoje, tem-se a noção de que a diferença entre vida e não vida é apenas uma questão de informação, e não de substância. Seres vivos contêm estonteantes quantidades de informação, que foram e são coletadas no passado e presente e acumuladas para melhorar as condições de vida dos organismos no futuro.

A maioria desse enorme volume de informações está codificada no DNA que, durante toda a evolução da vida na Terra, promoveu a sobrevivência não aleatória das informações que favoreciam a sobrevivência do corpo vivo.

Mesmo sem o notarmos, a evolução atua intensamente na natureza, embora cada vez mais sofrendo intervenções de ações humanas.

O crescimento do banco de dados genético do DNA favoreceu o surgimento de seres cada vez mais complexos e, em nosso habitat, culminou no desenvolvimento do córtex cerebral, que dotou de raciocínio lógico e previsibilidade a raça humana, a ponto de, hoje, podermos estar aqui refletindo sobre a vida.

O DNA é o maior banco de dados nos seres vivos, mas não é o único. Existem outros três reservatórios de informações a alimentar a vida: o sistema imune, o sistema nervoso e a cultura. Todas as vacinas criadas até hoje fazem uso das características do sistema imune para acumular informações de forma a dotar o organismo de armas que combatam invasores. Uma vez “catalogada” uma defesa, ela permanecerá ativa para o resto da vida, embora não possa ser transmitida aos descendentes de seu portador, mas uma nova vacina no bebê resolve a parada.

O funcionamento do sistema nervoso nos permite acumular informações que nos possibilitam aprender uma linguagem e exercer a fala utilizando suas palavras. Ela funciona por um processo de tentativa e erro, premiando os acertos e punindo os erros.

Mas, o que nos interessa aqui, é a quarta forma de acúmulo de informações passadas para que nos preparemos para o futuro: a cultura, que é uma decorrência da anterior. Nosso cérebro hoje inclui memórias coletivas herdadas por meios não genéticos, as quais serão acrescidas durante nossa vivência e passarão às gerações posteriores. Mesmo que não influam diretamente no DNA, provocando mutações, esse quarto banco de dados certamente influi na evolução.

Eis aqui o ponto central desse artigo. O que mais está crescendo em nossa cultura? Será que podemos considerar como “cultura” o conhecimento científico e tecnológico de nossa raça humana? Todas as expressões de artes e ofícios? E o que mais? De todo esse arco de conhecimento e habilidades humanos, em todo o mundo podemos constatar que uma das coisas que mais crescem é o exercício e divulgação da violência. Sim! A violência está se acumulando freneticamente em nosso banco de dados de cultura.

Aqui no Brasil, o principal noticiário televisivo, o Jornal Nacional, sempre abre com um bloco sobre notícias nesse sentido, já percebeu? Os demais canais de TV nacionais, para que possam obter alguma audiência, mantêm programas popularescos de exploração da miséria humana, sempre recheados de descrições detalhadas das violências praticadas. Pergunte a editores de jornais, qualquer um deles, quais são as manchetes que mais chamam a atenção? Quais são os programas de rádio que mais têm audiência? Como são os filmes de cinema recordistas de bilheteria? E as séries da TV fechada?

Criamos um círculo vicioso em torno da violência, que será difícil combatermos. A mídia os divulga porque dão audiência, e os consumidores de informações sempre encontram mais e mais violência, e a consomem cada vez mais avidamente, pois se acostumam a ela, ela passa a preencher mais e mais registros em seu banco de dados de cultura.

Na mídia em geral existe um código de ética que recomenda a não divulgação de suicídios. Me pergunto: porque não se cria um código assim para pelo menos diminuir a divulgação da violência? Qual o interesse noticioso existente na divulgação de que um marido espancou a mulher até a morte? Que se divulguem estatísticas para que a população saiba se esse tipo de violência está diminuindo ou crescendo, mas, os detalhes de casos individuais podem ter real interesse como informação?

Explosões de caixas automáticos de bancos são exibidas com detalhes assustadores. Também nesse caso, não bastariam as divulgações da simples ocorrência, sem que se exibam ou descrevam os detalhes da violência? É mesmo necessário que se fiquem divulgando, a conta-gotas, a contagem de vítimas fatais de atentados terroristas? Não é exatamente esse tipo de exposição de suas ações que os terroristas desejam?

Pela análise por esse ângulo, eu acho que a atual discussão no país se o porte de armas deve ou não ser flexibilizado, como acaba de fazer o presidente Bolsonaro, se vai auxiliar ou favorecer o cometimento de atos violentos, é a mais absoluta perda de tempo e desvio de foco. A necessidade ou não de se portar uma arma é apenas um sintoma, e não a causa do problema. A real causa do problema pode ser mesmo evolutiva!

Enquanto não dirigirmos nossa atenção para ações que possam interromper e reverter essa necessidade de divulgação e consumo da violência, cada vez mais estaremos alimentando o banco de dados cultural que moldará novas gerações a se tornar mais violentas.

A raça humana conseguiu driblar as leis da evolução, dando hoje quase que as mesmas possibilidades de longevidade a todos, independentemente de seu DNA estar ou não melhor equipado para a sobrevivência. A criação das vacinas alimenta o sistema imune artificialmente, melhorando o funcionamento do organismo. Métodos e tecnologias são constantemente criadas para alimentar as informações registradas em nosso sistema nervoso. A evolução das artes, da ciência e de toda a área de habilidades humanas também favorece o salutar aumento das informações do banco de dados cultural, mas a escalada da violência tem o dom de poder destruir toda essa evolução. Merece mais cuidado, não?

João Batista Cenzi
João Batista Cenzi é engenheiro mecânico, administrador de empresas e, atualmente, diretor da Instituto Pesquisas de Opinião Censuk. É comentarista constantemente convidado nas programações da TV Candidés e da Minas FM.